quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Valete

Valete, taí uma carta do baralho por quem eu nunca tive simpatia. Aquele maluquinho com ar arrogante de quem tudo pode. Prefiro os ases. As copas, espadas... acompanhadas do A são muito mais atraentes, me lembram as madrugadas que eu passava no bar do Ribeiro, apostando os trocos que eu ganhava olhando carro. Os ases são os ladrões, os artistas. Os números são o zé-povinho.
De repente vinham aquelas cartas com figuras de gente azeda. Tem os reis e as damas que, para mim, não fedem nem cheiram. Estes são os patrões. Mas o valete, em especial, é que não desce, porque se parece com aqueles playboyzinhos engomados da mesma idade que eu tinha e que, por conseguirem um cargo interno, ficavam me olhando com desprezo, nas empresas em que trabalhei como office-boy. Nunca gostei dessas figuras, usam perfumes comprados a crédito e camisa colada no peito. Ficam babando o ovo do chefe, querendo promoção, querendo puxar o tapete dos malucos, e quando o chicote estala, quando os caras descolam a conspiração, são os primeiros a ser demitidos. Aí, você tromba os vacilão no boteco da favela, bebendo e querendo desabafar, cheios de humildade e barba malfeita, falando gíria e o caralho.
O primeiro carro que eu roubei foi de um desses, que passam o sábado com um balde de água e sabão e uma lata de cera ouvindo putz-putz nos falantes. Minha raiva era muita. Sei lá, acho que estava de mal com Deus naquele dia. O indivíduo não tinha culpa, mas descarreguei o meu ódio em cima dele. Xinguei, bati, apavorei o cara de tal forma que até chorou. Implorou pra eu não apertar o gatilho. Detesto ver homem chorando, mas não fiz isso, não, que o que eu queria mesmo era o carro. Mas ri como um louco e depois fiquei sério e mandei o cuzão correr. Parecia um valete gigante, com pernas e braços, daquelas histórias tipo O Mágico de Oz ou Alice no país sei lá o quê. Tinha cheirado muito, por isso a viagem.
Pois é, roubei carro até umas horas. Me tornei um ás neste ofício. No começo era só de valetes, depois eu enquadrei uns reis também. Dama, não, porque eu achava que, se a casa caísse e vagabundo soubesse que eu tava roubando mulher, isso ia contar uns pontos no meu currículo criminal. Mas, ó, dava a maior vontade de deixar aquelas patricinhas a pé. Queria ver, esperando o buzão que nem a minha irmã, quando voltava do trampo, tomando encoxada de jack dentro do ônibus.
Virei profissional. Com menos de um ano de correria, já tinha roubado uns setenta carros. Não tinha alarme que eu não soubesse anular. O Aguinaldo, meu truta lá da rua, trabalhava numa empresa que fabrica essas merdas e me deu a letra de como destravá-los. Nem o satélite me rastreava. Quando pude, dei um fusca pra ele de presente, comprado legalmente numa feira perto de casa.
Foi foda quando ganhei nome. Tava molhado pra mim, todo mundo já sabia das minhas habilidades. Um tiozinho trancou a porta com chave dentro e me pediu ajuda. Meti a mixa e já era. Mas aí, tá ligado, né? O verme bebeu umas cachaças a mais e pronto. Sempre tem um ganso ouvindo conversa de zé-povinho.
Me pegaram e eu tive que ficar uma cota roubando pra sustentar o delegado e os seus gorilas. Aí, tava embaçado pra eles, a corregedoria em cima, cobrando serviço, a imprensa toda hora falando. Os caras tentaram me matar, mas eu sobrevivi. Fui pro hospital com quatro tiros, mas escapei. Fiquei um tempo cagando no saquinho e vim parar nessa porra de cela. Dividindo colchonete com outro irmão, deitado que nem um valete. Olha a ironia.
Os manos-de-fé que correm pelo certo sempre me mandam uma letra. Várias idéias pra eu parar de roubar, tentar uma vida nova quando sair daqui e tal.
Sei lá, no fundo, eu me sinto que nem essas cartas que tanto odeio. Parece que minha alma tem dois lados, depende do que está por cima no dia.
Bom, tenho tempo pra pensar, peguei doze anos e só cumpri seis até agora. Na minha última tentativa de assalto, um valete quis dar uma de pá e eu furei ele bem em cima do J.
É assim mesmo, tem dia que tudo dá certo, no outro nem tanto.

Serginho Poeta
O Guardião do Tempo

Hoje sou a janela por onde passado e futuro se contemplam. Cada um com a sua infância, neto e avô sabem tudo o que eu ainda não sei, ou que já esqueci. Ignorante dessas coisas de velho e criança, olho adiante e vejo, quase sempre, nada além de notas vermelhas no boletim, a falta de um agasalho na tarde de inverno, a palavra pronunciada da forma errada... Quando olho para trás deparo-me com o ar severo de quem me criou, como se esquecesse a fisionomia que tinha no instante ido, terna e paciente. A correção dos meus vícios de homem feito, como a displicência no trânsito, o cigarro a cada meia-hora, faz com que eu me pergunte por que meu pai não me criou da mesma maneira que trata o meu filho, sem muitas exigências. Mas eu mesmo posso responder a esta questão sem grandes dificuldades e sem muita psicologia: - O fato é que passado e futuro não podem se enxergar sem essa lente misteriosa da contemplação. Um admira quem foi e o outro, quem se tornará. Cada bronca que ainda levo, não é a mim que se destina, mas ao meu sucessor, como um alerta à essa fascinante e árdua tarefa de perpetuar a espécie. Pena que os gestos pueris com que se comuni-cam dispensem a minha participação. Tenho notado que os beijos e brincadeiras exageradas entre neto e avô são para me mostrar que só são possíveis graças à firmeza com que seguro os elos da corrente entre o antes e o depois.

Serginho Poeta