domingo, 16 de novembro de 2008

A Hora da Estrela (O Poema)

De repente algo perturba, incomoda
E por mais que se tente não se pode
Afastar o desejo repentino que explode
Por dentro do corpo e da cabeça toda

E parece então que algo desbota
Como nascesse enfim outro universo
Dentro da alma e após no verso
E o verso depois é quem denota

Como um parto, dou à luz a personagem
Pálida, confusa e assustada
Como alguém assim recém chegada
Que não conhece no espelho a própria imagem

Solto ao mundo um ser ainda empelo
Emergido ele de mim mesmo
Como espasmo que se sente a esmo
Como um grito a escapar do pesadelo

Tão pobre em si é minha idéia
Nascida antes mesmo de nascer
Que como um cão que é cão sem o saber
Nada saberá de si minha Macabéa

Só terá ciência do que eu lhe impuser
Ademais saberá que é nortista
Que deseja ao longe ser artista
Além, apenas que é mulher

Mas por mais que falte nela
Uma centelha qualquer de ânimo
Um espírito sagaz ou magnânimo
Há no seu passado uma janela

E pela vidraça estilhaçada eu observo
A história dessa jovem aqui sentada
Na platibanda do jardim da invernada
Ao meu lado esperando enquanto escrevo

Devo dizer dela: Órfã cedo
Pagou pelo infortúnio de ser pobre
Na cidade onde cedo se descobre
Que a solidão é um sanguinário desenredo

Esquece-te agora, oh Macabéa
Do navio que some no horizonte
Do marinheiro alinhado aí defronte
É a hora da estrela e da estréia

Esta insossa criação insatisfez a obra
Pobre e parco ser que só revela
Uma criatividade morna
De um criador tão morno quanto ela
E se escrevo,
Escrevo apenas porque a mim não basta
Esta minha vida fútil
Que se desgasta inutilmente
Mas antes de escrever eu vivo
E fosse, escrever somente
Juro então que eu não a mataria

Mas apressa-se agora, minha cria
Que enfim tornar-se-á uma estrela
E de todos os lugares virão vê-la
Manchada de sangue ao meio fio
E poderá quem sabe descobrir-se
N’outro plano,
Longe da cidade em desvario

Dou-lhe à sorte de um sonho avesso
De uma urbana e comum fatalidade
E volto aos afazeres do meu cotidiano

De ti, ó musa ignóbil, me despeço
E quem sabe um dia,
Em uma tarde de algum tempo que eu tiver
À prateleira de alguma biblioteca
Poderei por ledo engano
Encontrar sua vida a sangue escrita
Adulterada pelas mãos de outro poeta

Serginho Poeta