quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Valete

Valete, taí uma carta do baralho por quem eu nunca tive simpatia. Aquele maluquinho com ar arrogante de quem tudo pode. Prefiro os ases. As copas, espadas... acompanhadas do A são muito mais atraentes, me lembram as madrugadas que eu passava no bar do Ribeiro, apostando os trocos que eu ganhava olhando carro. Os ases são os ladrões, os artistas. Os números são o zé-povinho.
De repente vinham aquelas cartas com figuras de gente azeda. Tem os reis e as damas que, para mim, não fedem nem cheiram. Estes são os patrões. Mas o valete, em especial, é que não desce, porque se parece com aqueles playboyzinhos engomados da mesma idade que eu tinha e que, por conseguirem um cargo interno, ficavam me olhando com desprezo, nas empresas em que trabalhei como office-boy. Nunca gostei dessas figuras, usam perfumes comprados a crédito e camisa colada no peito. Ficam babando o ovo do chefe, querendo promoção, querendo puxar o tapete dos malucos, e quando o chicote estala, quando os caras descolam a conspiração, são os primeiros a ser demitidos. Aí, você tromba os vacilão no boteco da favela, bebendo e querendo desabafar, cheios de humildade e barba malfeita, falando gíria e o caralho.
O primeiro carro que eu roubei foi de um desses, que passam o sábado com um balde de água e sabão e uma lata de cera ouvindo putz-putz nos falantes. Minha raiva era muita. Sei lá, acho que estava de mal com Deus naquele dia. O indivíduo não tinha culpa, mas descarreguei o meu ódio em cima dele. Xinguei, bati, apavorei o cara de tal forma que até chorou. Implorou pra eu não apertar o gatilho. Detesto ver homem chorando, mas não fiz isso, não, que o que eu queria mesmo era o carro. Mas ri como um louco e depois fiquei sério e mandei o cuzão correr. Parecia um valete gigante, com pernas e braços, daquelas histórias tipo O Mágico de Oz ou Alice no país sei lá o quê. Tinha cheirado muito, por isso a viagem.
Pois é, roubei carro até umas horas. Me tornei um ás neste ofício. No começo era só de valetes, depois eu enquadrei uns reis também. Dama, não, porque eu achava que, se a casa caísse e vagabundo soubesse que eu tava roubando mulher, isso ia contar uns pontos no meu currículo criminal. Mas, ó, dava a maior vontade de deixar aquelas patricinhas a pé. Queria ver, esperando o buzão que nem a minha irmã, quando voltava do trampo, tomando encoxada de jack dentro do ônibus.
Virei profissional. Com menos de um ano de correria, já tinha roubado uns setenta carros. Não tinha alarme que eu não soubesse anular. O Aguinaldo, meu truta lá da rua, trabalhava numa empresa que fabrica essas merdas e me deu a letra de como destravá-los. Nem o satélite me rastreava. Quando pude, dei um fusca pra ele de presente, comprado legalmente numa feira perto de casa.
Foi foda quando ganhei nome. Tava molhado pra mim, todo mundo já sabia das minhas habilidades. Um tiozinho trancou a porta com chave dentro e me pediu ajuda. Meti a mixa e já era. Mas aí, tá ligado, né? O verme bebeu umas cachaças a mais e pronto. Sempre tem um ganso ouvindo conversa de zé-povinho.
Me pegaram e eu tive que ficar uma cota roubando pra sustentar o delegado e os seus gorilas. Aí, tava embaçado pra eles, a corregedoria em cima, cobrando serviço, a imprensa toda hora falando. Os caras tentaram me matar, mas eu sobrevivi. Fui pro hospital com quatro tiros, mas escapei. Fiquei um tempo cagando no saquinho e vim parar nessa porra de cela. Dividindo colchonete com outro irmão, deitado que nem um valete. Olha a ironia.
Os manos-de-fé que correm pelo certo sempre me mandam uma letra. Várias idéias pra eu parar de roubar, tentar uma vida nova quando sair daqui e tal.
Sei lá, no fundo, eu me sinto que nem essas cartas que tanto odeio. Parece que minha alma tem dois lados, depende do que está por cima no dia.
Bom, tenho tempo pra pensar, peguei doze anos e só cumpri seis até agora. Na minha última tentativa de assalto, um valete quis dar uma de pá e eu furei ele bem em cima do J.
É assim mesmo, tem dia que tudo dá certo, no outro nem tanto.

Serginho Poeta
O Guardião do Tempo

Hoje sou a janela por onde passado e futuro se contemplam. Cada um com a sua infância, neto e avô sabem tudo o que eu ainda não sei, ou que já esqueci. Ignorante dessas coisas de velho e criança, olho adiante e vejo, quase sempre, nada além de notas vermelhas no boletim, a falta de um agasalho na tarde de inverno, a palavra pronunciada da forma errada... Quando olho para trás deparo-me com o ar severo de quem me criou, como se esquecesse a fisionomia que tinha no instante ido, terna e paciente. A correção dos meus vícios de homem feito, como a displicência no trânsito, o cigarro a cada meia-hora, faz com que eu me pergunte por que meu pai não me criou da mesma maneira que trata o meu filho, sem muitas exigências. Mas eu mesmo posso responder a esta questão sem grandes dificuldades e sem muita psicologia: - O fato é que passado e futuro não podem se enxergar sem essa lente misteriosa da contemplação. Um admira quem foi e o outro, quem se tornará. Cada bronca que ainda levo, não é a mim que se destina, mas ao meu sucessor, como um alerta à essa fascinante e árdua tarefa de perpetuar a espécie. Pena que os gestos pueris com que se comuni-cam dispensem a minha participação. Tenho notado que os beijos e brincadeiras exageradas entre neto e avô são para me mostrar que só são possíveis graças à firmeza com que seguro os elos da corrente entre o antes e o depois.

Serginho Poeta

domingo, 16 de novembro de 2008

A Hora da Estrela (O Poema)

De repente algo perturba, incomoda
E por mais que se tente não se pode
Afastar o desejo repentino que explode
Por dentro do corpo e da cabeça toda

E parece então que algo desbota
Como nascesse enfim outro universo
Dentro da alma e após no verso
E o verso depois é quem denota

Como um parto, dou à luz a personagem
Pálida, confusa e assustada
Como alguém assim recém chegada
Que não conhece no espelho a própria imagem

Solto ao mundo um ser ainda empelo
Emergido ele de mim mesmo
Como espasmo que se sente a esmo
Como um grito a escapar do pesadelo

Tão pobre em si é minha idéia
Nascida antes mesmo de nascer
Que como um cão que é cão sem o saber
Nada saberá de si minha Macabéa

Só terá ciência do que eu lhe impuser
Ademais saberá que é nortista
Que deseja ao longe ser artista
Além, apenas que é mulher

Mas por mais que falte nela
Uma centelha qualquer de ânimo
Um espírito sagaz ou magnânimo
Há no seu passado uma janela

E pela vidraça estilhaçada eu observo
A história dessa jovem aqui sentada
Na platibanda do jardim da invernada
Ao meu lado esperando enquanto escrevo

Devo dizer dela: Órfã cedo
Pagou pelo infortúnio de ser pobre
Na cidade onde cedo se descobre
Que a solidão é um sanguinário desenredo

Esquece-te agora, oh Macabéa
Do navio que some no horizonte
Do marinheiro alinhado aí defronte
É a hora da estrela e da estréia

Esta insossa criação insatisfez a obra
Pobre e parco ser que só revela
Uma criatividade morna
De um criador tão morno quanto ela
E se escrevo,
Escrevo apenas porque a mim não basta
Esta minha vida fútil
Que se desgasta inutilmente
Mas antes de escrever eu vivo
E fosse, escrever somente
Juro então que eu não a mataria

Mas apressa-se agora, minha cria
Que enfim tornar-se-á uma estrela
E de todos os lugares virão vê-la
Manchada de sangue ao meio fio
E poderá quem sabe descobrir-se
N’outro plano,
Longe da cidade em desvario

Dou-lhe à sorte de um sonho avesso
De uma urbana e comum fatalidade
E volto aos afazeres do meu cotidiano

De ti, ó musa ignóbil, me despeço
E quem sabe um dia,
Em uma tarde de algum tempo que eu tiver
À prateleira de alguma biblioteca
Poderei por ledo engano
Encontrar sua vida a sangue escrita
Adulterada pelas mãos de outro poeta

Serginho Poeta

terça-feira, 15 de julho de 2008

Neruda

O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados? Respondo que o oceano sabe. Por quem a medusa espera em sua veste transparente? Está esperando pelo tempo, como tú. Quem as algas apertam em seus braços? Perguntas mais firme que uma hora e um mar certos? Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre. Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul. Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa, encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola. Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento.

Pablo Neruda

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Diário de Bordo

Cada navio afundado, cada navio a passar
Tem no seu bojo um diário
Tendo os diários de bordo tem-se a historia do mar
As algas do mar são cabelos
Que os anjos cortam no céu
E as ilhas os grandes novelos
Que enrolam o fio do horizonte
Quando a noite desce seu véu
As ondas batendo são cantos escritos na pauta da areia
Gravados à noite nas conchas
Por uma orquestra de santos e um grande coral de sereias
As pérolas dentro das ostras
São lágrimas tristes de Deus
São prantos de gotas acesas
Belezas de tantas tristezas
Diamantes que dizem adeus
As pedras são astros, que velhos
Caíram no mar entre a bruma
Estrelas que se congelaram
O limo que as cobre são rugas
E os brancos cabelos a espuma
As grutas do mar são castelos
Antigas moradas dos deuses
As festas no mar são de gala
E os peixes o corpo de baile
E as águas tocando verseuses
Rastro de luz no oceano
É o caminho de São Pedro
Tá no jardim no infinito
Só os namorados o querem
E onde os poetas vão sê-lo
A terra foi mar no começo
O mar é a terra que temos
Trabalho dos pescadores
É empurrar mar pra terra
Com o movimento dos remos
Mar que enfurece e se acalma
Maré que enche e recua
É o corpo do mar que obedece
A tudo que manda sua alma
Que mora com a alma da lua
Cada navio afundado, cada navio a passar
Tem no seu bojo um diário
Tendo os diários de bordo tem-se a historia do mar

Paulo César Pinheiro

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O Goleiro

É como se o tempo não tivesse passado. É como se eu ainda estivesse lá sentado, vendo do outro lado do campo o emaranhado de pernas esfoladas e meiões caídos aos tornozelos. Deitava-me no chão de terra batida e assistia ao balé das nuvens, completamente alheio à disputa a que era forçado a participar. Acordava com os gritos irados do meu irmão, após termos levado um gol.
Aquela brincadeira não era muito agradável para mim, o caçula entre os garotos da vila. Minhas pernas saíam inchadas, meus joelhos ralados e minhas mãos ficavam vermelhas. Não podia nem pensar em chorar.
O tempo foi passando e eu me acostumando, e mais, acabei por gostar de ser o número um. Era como se eu me tornasse peça fundamental, tanto quanto as traves. Cresci e me aprimorei, já tinha tamanho suficiente para me impor, jogar na posição que eu quisesse, mas me fazia gosto ver a decepção na cara dos artilheiros.
Aqui estou, vinte anos depois! O torneio de futebol mais importante do planeta e a maior parte dos seus habitantes, voltados para esse pedaço de campo. O último chute, não há rebote. Dizem que é uma loteria. Cara ou coroa.
O absoluto silêncio que envolve o estádio permite que eu ouça o arrolhar dos pombos nos vãos das marquises e os passos do meu adversário sobre a grama macia. Escuto uma prece murmurante, enquanto ele ajeita a bola na marca fatal e quase confundo as batidas firmes dos nossos corações. Uma eternidade parece anteceder o apito do árbitro, mas ele vem, ensurdecedor como o sinal vespertino das fábricas, soberbo como o grasnar de uma águia. Agora sou eu a última fronteira entre o sorriso e a lágrima.
Resolveram deixar para mim a missão de salvar uma pátria, de libertar um povo:-Ladrões, policiais, empresários, médicos, padres, políticos, advogados, donas-
de-casa, mendigos, índios, pais, filhos, gente sem dentes, sem dignidade, sem
caráter, eu sou o remédio. Sou a salvação de quem não sabe votar, a desculpa de
quem não sabe governar, sou o suspiro de quem morre ou renasce a cada quatro
anos.
Todos os músculos do meu corpo obedecem a um único comando. Meu cérebro só tem nesse momento uma única intenção: -Tocar a bola. Minhas falanges conduzem o resto dos meus noventa e tantos quilos. Não respiro. Estou apenas a alguns centímetros do meu objetivo. Fecho os olhos. Não sei se estou certo ou errado, mas vou. Que Deus me perdoe!!!
Sinto a pancada da bola em meus dedos. Meu corpo flutua por uma fração de segundos, depois desliza pelo gramado e a seguir, corpos caem sobre o meu, no calor da vitória: - Eu consegui!!!!!
O estádio pulsa, ecoando meu nome a se perder na imensidão da história, no curso dos ventos, insensíveis às glorias, devastador dos momentos. Cada segundo dessa lembrança, me tocará com a força das marés, serpenteando contra o impávido rochedo. Cada toque do tempo, nas cordas da minha memória, deixarão nos ares arredios da minha idade a imagem de um herói, acima do manto de um mísero goleiro.


Serginho Poeta

Nota Vermelha ou "Pelo resto da Vida"

Fui à reunião do meu filho, Hector. Ele tem tido boas notas, exceto em Educação Física, mas está com problemas de relacionamento. Bom, até aí tudo bem, a gente vai conversando e dá um jeito. Crianças (e adultos) passam por fases. O que me preocupa é o discurso da professora: "... ele está muito bem, tem ótimas notas, mas em Educação Física tirou nota vermelha por causa de um trabalho não feito. Tá vendo o
senhor, agora ele vai ter que carregar esta nota vermelha pelo resto da vida." (espero que não)
Bom, eu poderia ficar aqui discursando sobre esta idéia da professora, mas sei que os meus leitores são inteligentes e sabem o que está implícito nesta fala.
Se ela soubesse quantas notas vermelhas eu tirei e tenho tirado chamaria o conselho tutelar. Mas não as carrego, não mais, nem as azuis, o que importa são as que virão, sejam lá de quais cores.


Serginho Poeta
Fotos: Kátia Portes






















A Caminhada Donde Miras, da qual eu faço parte, está agora em sua segunda etapa -

Santos - Cananéia. Na primeira noite dormimos na aldeia Guarani de Tenondé Porã. No dia seguinte caminhamos por doze horas, sem refresco, dentro da Mata Atlântica. Foi pra Indiana Jones nenhum reclamar. Nada que eu disser aqui será tão fiel a esta aventura quanto o relato do companheiro de trilha, Peu Pereira, logo abaixo.














O Primeiro Dia de Caminhada

Cheguei na aldeia de Parelheiros uma da manhã de sábado depois ter gravado um ótimo discurso do Plínio de Arruda Sampaio. Me da licença de lembrá-lo aqui: "houve um momento em que os burgueses perderam o medo dos pobres. Chegou a hora de os pobres perderem o medo da burguesia! "A luta de classes é necessária, sem ela nós não fazemos a revolução".Foi aplaudido de pé por muito tempo, era um evento em solidariedade a criminalização do MST lá no sul. Estou de total acordo.Voltando a aldeia quem me conhece sabe que eu fui dormir as cincos da manhã, proseando com os índios em volta da fogueira. Tava um frio danado. Conversamos sobre muitas coisas. A tradição indígena, a pesquisa dessa tradição, de oportunistas, infelizmente estão por toda parte. Contamos piadas e rimos muito, tinha um índio que ria mais que todo mundo, ria de um modo engraçado, me lembrou o Dom Juan do Castañeda.As seis da manhã estávamos de pé! Caminhando rumo a Barragem onde andaríamos por trilhos de trens. Foi um caminho diferente andar pelos trilhos foi bem bonito, não muito fácil, mas bem bonito. Caminhamos por eles umas duas horas, vimos alguns trens passando, várias marcas gringas estampadas nos vagões. Nossa riqueza tudo indo embora ali naquele trem. Naquele monstro gigantesco com mil vagões, teve um que ficou passando durante uns 20 minutos pra vocês terem uma idéia, tem coisa que você só vê andando. Passamos por túneis e tudo mais. Até chegarmos a um ponto onde havia uma picada na mata.Entramos nela, confesso que eu não tinha a menor noção de que ia demorar tanto. Puts! Ali a gente começou a descer a serra do mar. Nossa! Era um barranco que não acabava mais. Mas era lindo. Foi muito louco andar numa trilha como aquela, muito estreita, íngreme no último. Na trilha nós paramos pra comer várias vezes e fomos num grupo grande, cinqüenta pessoas na floresta. Foi da hora.Depois de umas três horas caminhando, chegamos a um rio que tínhamos que atravessar pelas pedras. Deu trabalho! Tira tênis, amarra na mochila, tira bermuda, faz todo um esquema pra poder passar, mas esse era raso pelo menos. Depois, prosseguimos Serra abaixo! Continuamos andando até escurecer. Houve uma certa euforia entre pânico e excitação. Andar na mata a noite, é mil grau! Não dá pra vê nada! Andamos no escuro mais ou menos uma hora. Chegamos a uma aldeia no meio da serra, lá tinha uma fogueira e estava frio.Houve uma parada, a galera estava destruída. Ficamos todos deitados lá perto da fogueira, acendi um cigarro e relaxei total, ali tava bom. Mas ainda tinha que andar e, pior! Atravessar um rio que batia na cintura e, ainda por cima, a noite. Puts! Foi penoso, adrenalina mil grau, lá em cima!!! Depois andamos pra muito ainda, no escuro com as lanterninhas. Até finalmente chegarmos na aldeia.Cheguei e dormi, depois acordei e comi uma comida gostosa que uma índia cozinhava na fogueira, arroz e frango, uma canja deliciosa. Depois dormi de novo.Dia seguinte, vinte e cinco quilômetros, mas aí era uma estrada e havia um rio acompanhando e paramos pra nadar... foi um caminho cansativo, mas muito gostoso.Finalmente chegamos no antigo cadeião de Santos onde nos hospedamos. Daí foi deixar a mala e correr para o sarau na cidade. Fizemos o sarau numa feira e foi danado! "minha terra tem palmeira, mas eu nunca vi". "vamos! Reconstruir palmares". "quero ver onde essa América se dizmorena". Musica, rimo e muito agito! Foi bem legal.Estou seguro de que para fazer a revolução é preciso andar, caminhar, viajar entre povos e conhecer com o coração as realidades desse país. Quando todos as partes juntas entenderem... elas as ultimas linhas do Capital.

Peu Pereira.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Todas as Dores do Mundo


Preso em incontáveis bilhetes de amor
Era um raro par de asas seu sorriso
Hoje, livre, voa só, num céu granizo
E o que escrevo ninguém há que dê valor

Enfeito de versos os meus pensamentos
Desde o instante em que ouvi a sua voz
Agora, mesmo quando passa mais veloz
Seus sons ainda me tomam os sentimentos

Quando detinham-se na cor da sua pele
Os meus olhos refletiam um mar moreno
- nesga d’água, dilatando-se no olhar

Ao sentir a sua carne junto a ele
Corriam ondas no meu corpo, sem empeno
Nada tinha eu a querer, só navegar


Firme os pés em terras tão seguras
E o torpor que é direito aos precavidos
Ao mar, lancei-me incerto às aventuras
Que esperam navegantes desvalidos

O que vinha pela frente era mistério
Mas na ânsia de saber o seu segredo
Mais firme no intento que no medo
Já vencido, me rendi ao despautério

E fui, me deixando ser levado...
Pelos ventos...pela força das marés...
Verdes águas. Se não fossem traiçoeiras...!

Tudo aquilo que havia desejado
Tinha agora ao redor do meu convés
Recolhi as velas e içei minhas bandeiras


Por vontade ancorado no infinito
Onde bramem os sentidos mais profundos
De dores e prazeres, oriundos
Tudo pareceu-me mais bonito

Os astros falavam-me em gestos
Reparavam meu veleiro avariado
O oceano sob o céu enluarado
Invejoso, sacudiu-me em manifestos

Fui levado ao azul do planisfério
Onde os deuses ocultam tal ciência
Que nem sabe o mais grado magistério

D’onde nasce, se é semente, fruto e flor?
Da mais útil a mais vã experiência
Nenhuma há que se iguale a do amor


A partir de onde a febre
Coordenou os meus incertos movimentos
E o barco, louco, riu do sopro aos cata-ventos
E das ondas que estalavam no alquebre...

De onde o corpo, então sentiu
Um raio percorrer-lhe o estreito espaço
Que lhe separa a condição de putrefaço
Dos sândalos da alma pueril...

Nenhuma afirmação merecedora
De atenção ou de credibilidade
Posso dar a quem acaso me pergunte

Nada sei sobre a avassaladora
Impetuosa e voraz intensidade
Daquilo a me arrastar naquele instante


Tal qual um condor ferindo as nuvens
Na vastidão de um inóspito arredor
Surgiu a musa num palíolo multicor
Senhora de todas as vertigens

... e o mundo tornou-se imóvel e silente
Entre os azulados celestes e marítimos
Vendo a luz dos sonhos íntimos
Sorrir-me absoluta e inconseqüente

A eterna busca de um efêmero instante
Corrompeu de forma brusca o raciocínio
De quem, lúcido gabava-se ser cético.

E o que era incrível ao navegante
Surgia como a causa de um fascínio
Que viria a forjar seu dom poético


O desejo que atormenta aos sentidos
E a beleza entorpecente de Pandora
Transformavam-me ali, naquela hora
No maior entre os seres já vividos

Da heresia cometida não dei conta
Ao fartar-me em seus lábios e em seus seios
Satisfiz no ser divino os meus anseios
Adormecendo nos seus braços de santa

Despertei como o bêbado do vinho
A cabeça em atroz redemoinho
E o corpo exausto pelo açoite

Apenas os destroços da minha nau
A esperança e um denso vendaval
Foi tudo que restou daquela noite


Ao tomar o deserto a minha volta
Antecedendo o silêncio que surgia
Então, vi que tudo se esvaía
Até a lua c’o as estrelas de escolta

A sós fui ficar com com o céu noturno
Sem ao menos desfrutar prazeres falsos
Só a areia a me pungir os pés descalços
Num caminho feroz e taciturno

Andei tantas mil léguas sem destino
Embaixo do calor que a tudo escalda
Sem que pudesse ouvir a voz humana

Notei que existe luz no desatino
E que a quem sofre a dor respalda
Quando nem na morte a esperança abandona


Tive o peito dividido em duas partes:
- Uma, que no corpo ainda é peito
E outra, onde um sonho jaz desfeito
E pelo mundo, anda a vagar, fazendo artes.

Os deuses condenaram-me a viver
Como castigo por tão grande sacrilégio
Sem que nada no meu peito seja régio
Ou que eu possa outro amor voltar a ter

E a que eu sinta mais a dor – como castigo
Não será minha, só a dor que me aflija
Mas a de todos que deixarem-na comigo

E a viver essa vingança em seu propósito
Dirão a quem sofrer que a mim dirija
E da dor faça de mim o seu depósito
Serginho Poeta

San ernesto de La Higuera

Por que o meu corpo não estava à frente
Do tiro que irrompeu a tua carne?
Poderias, com muito mais capacidade,
Enfrentar o mal que ronda a minha casa.
Vejo, da minha janela, o escuro lá fora.
Ouço os gritos e me acovardo!
A ave de rapina pilha o ninho vizinho,
Enquanto eu conto ao meu filho a tua história.
Falo do que fizestes; da bravura que tivestes.
Só temo que ele me pergunte o que eu faço.
Devo dizer que temo o bicho-papão?
E se o mal invadisse a minha casa
Nesse exato instante em que te escrevo?
Esconderia-me debaixo da cama?
De certo que não.
Mas, então, eu me pergunto:
Por que não enfrento o monstro, lá fora?

Longe da minha casa e da minha cria?
Tua foto está ao lado da dele, Ernesto.
É como se eu pedisse proteção.
Teu retrato na parede
É como uma corrente de alho,
Que espanta os maus espíritos.
Ajoelharia-me diante do teu quadro,
Onde olhas para o horizonte,
E faria uma prece por tua ajuda.
Mas sei que não seria do teu agrado.
Não ensinaste ninguém a se curvar.
Então, se me ouves,
Ainda que, hoje, sejas apenas história,
Inspira-me com tua coragem revolucionária!

Estaria disposto a morrer, essa noite,
Enquanto escrevo esse desabafo,
Se a minha morte
Trouxesse um novo sol para o meu povo.
Não aquele, de oito de outubro,
Na Quebrada Del Churo,
Onde foras alvejado por uma bala cega.
Mas um, como na tarde de Havana, em 1959.
Se a minha morte valesse um sorriso
De um índio peruano,
De uma criança da Nicarágua,
De um negro do Haiti!
Se o meu sangue afogasse
O imperialismo ao norte do continente
E a minha carne fosse a última
A servir de alimento
Ao bico afiado da águia,
Certamente, não me arrefeceria a alma,
Atitude tão engajada nos teus conceitos.

Depois, Ernesto,
Acenderíamos um bom charuto
Numa pedra em Higuera.
E sobre o horizonte,
Para onde olhas na fotografia,
Veríamos o entardecer no céu da Bolívia,
E, então, poderíamos descansar em paz.

Serginho Poeta

terça-feira, 1 de julho de 2008

A Espera do Eclipse

Ouvir Schuber no rádio
Enquanto dormes e consumo tua beleza
Por que não?
Haverão de dizer que sou pedante
Mas a lua está no céu, esplendorosa
E por isso sou poeta
Para entender (sem entender)
O que é belo

Esperei e não vi o tal eclipse
Mas a tua silhueta na brancura do lençol
É mais bonita que a sombra da Terra
Passando sobre a Lua
E no instante em que te escrevo este poema
Ela clareia nosso quarto
(Seu corpo é o planeta que habito)

Por isso estou sem sono
Para contar-te a beleza que não vês
E por isto sou poeta
Para ilustrar os teus sonhos
Com os poemas que escrevo.

Serginho Poeta

Eu e a Música

Tenho com a música uma relação de amizade, embora quisesse desfrutá-la toda, despí-la e fartar-me de tudo que ela pudesse me dar. Mas ela não me aceita desta forma. É promíscua mas tem seus caprichos.
Cínica, se exibe e ainda permite que eu entre em seu quarto e a veja nua. Estranho sentimento este, que mistura ao ciúme a satisfação de vê-la morrendo e renascendo nas mãos de outros.
Mas esta proximidade com os acordes me trouxe muitos amigos.
Assim escrevi ao músico e compositor, Everson Pessoa:
"Se manipulo tão bem as palavras, fazes mais; além das palavras, dominas também as notas musicais."

Serginho poeta

Já o mestre Paulo César Pinheiro disse assim:

"A música me ama, ela me deixa fazê-la
a música é uma estrela, deitada na minha cama
ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber
quando dou conta e vou ver
ela já entrou no meu peito
no que ela entra a alma sai
fica meu corpo sem vida
volta depois comovida e eu nunca soube onde vai
meu olho dana a brilhar, meu dedo corre o papel
e a voz repete um cordel que se derrama do olhar
fico algum tempo perdido até me recuperar
quase sem acreditar se tudo teve sentido
a música parte e eu desperto pro mundo cruel que aí está
com medo dela não mais voltar
mas ela está sempre por perto
nada que existe é mais forte
e eu quero aprender-lhe à medida
de como compõe minha vida
que é para eu compor minha morte"

Ao Capitão

Nasce, menino
Sem que o mundo tome conhecimento da sua natalidade.
Clandestino, apenas mais dois pés
Nas peladas de rua da nossa cidade.
Amedronta quem te aponta como um problema,
Foge do sistema que se apressa em cantar o seu destino.
Corre menino que o tempo não te espera e a sorte não te avisa.
A esfera onde pisa, anseia em te conhecer
E como tudo é imprevisível,
O impossível sempre teima em acontecer,
E aí, o sonho de todos os meninos se torna realidade,
Quando o topo do mundo não causa vertigem
A quem de cima do pedestal, coberto de humildade,
Não esquece a sua origem.
***
-Parabéns capitão!Por um momento vi meu sonho em suas mãos, quando do alto da sua glória não se esqueceu de nós. Transformando a zona sul num imenso Jardim Irene, você deu uma cota de auto-estima a quem carece de orgulho próprio. No dia seguinte ao seu feito, muitos garotos pelo Brasil estarão correndo com a bola nos pés e fingindo ser você e seus companheiros. A primeira vez em que te vi na televisão foi numa entrevista, onde perguntado se era de origem humilde, não negou, e ainda fez questão de dizer que seu bairro era pobre sim, mas um lugar de gente honesta e trabalhadora. É bom ver que tanto tempo depois, ainda pensa da mesma forma. Sua história de luta e perseverança é tão fascinante quanto o seu sorriso ao final da batalha vencida. Ensinou aos seus sucessores, provavelmente meninos carentes das periferias brasileiras, que a obrigação de quem sonha é acreditar e a obrigação de quem vence é lembrar-se do ponto de onde partiu.
Serginho Poeta

Casa Padre Batista

Entre os meses de abril e junho de 2008, eu tive o prazer de trabalhar em um abrigo para jovens e crianças. Digo que foi um prazer por se tratar de uma grande descoberta para mim, conhecer meninos e meninas tão especiais, que suplantam os seus dramas pessoais e nos dão a grata surpresa dos seus talentos. Meninos e meninas inteligentes, capazes, e sobretudo fortes, forjados nas ruas, nas favelas, nos seios de famílias desestruturadas.
Só lamento educadores voltados apenas para a disciplina, que não conseguem enxergar a direção que os jovens lhes apontam. Preconceituosos, duvidam dos potenciais ainda em flor.
Mas de tudo, fica a saudade, foram dias mágicos aqueles.

Expedición Donde Miras

No mês de janeiro de 2008, eu e os meus amigos Binho e Peu, demos início a um sonho; percorrer a América Latina a pé. Conosco um grupo de artistas da periferia de São Paulo se aventurou pelas estradas do Vale do Ribeira, levando nossa arte suburbana por diversas cidades entre São Paulo e Curitiba. Era a primeira etapa da Expedición Donde Miras, que deverá percorrer ainda um trecho entre São Paulo e Cananéia antes de partir para caminhos entre Assunção, Buenos Aires, Montevidéo e Santiago.

Nesta nossa etapa inaugural de caminhadas estivemos nas cidades de Taboão da Serra, Itapecerica, Embú das Artes, São Lourenço da Serra, Juquitiba, Miracatú, Juquiá, Sete Barras, Eldorado, Iporanga, Apiaí, Itaoca, Ribeira, Adrianópolis, Tunas do Paraná, Bocaiúva do Sul, Colombo e Curitiba.

A aventura foi marcante para todos, além de levarmos nossa arte, aprendemos muito com artistas locais e com pessoas simples e hospitaleiras de cada bairro, de cada vila.

----------------------------Ao lado, fotos dos fatos

Para saber mais - http://www.expediciondondemiras.blogspot.com/

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Largo e Profundo

No instante
Em que o sino da igreja anuncia
A hora da Ave Maria
O Menino outra vez desafia
A Guarda Municipal
Precipita-se por entre o comércio informal
E o mar de gente confusa
Desce a alameda em queda livre
E vai se abrigar nos braços da Meretriz
O Ambulante canta a oferta
Abafando o alerta de pega ladrão
No instante seguinte
O Padre bendiz o Menino
No ato do seu sermão
E a Carola, samaritana boa
Que momentos antes
Perdera a bolsa e a fé nos meninos
Reza e perdoa
E tudo volta ao normal

Percebo um olhar de soslaio
No Largo Treze de Maio
Coberta de jóia falsa
A maquiagem realça
O rosto da Moça da Vida
E a pouca idade que tem
A Guarda esquece o menino
O Ambulante grita de novo
E o povo se agita na praça

É tudo pressa de novo
E o Ônibus passa
E passo Eu e o Menino
A Carola e a Puta
Só o Largo Treze não passa.

Serginho Poeta

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ode à Caneta Operária

Óh, Minha Caneta!
Enquanto vejo o azul marinho
Na transparência do teu corpo
Ma pergunto:

- Tú que foras feita
pelas mãos de um operário
que é provável
nunca leia este poema
não és também uma operária?

Pois, labutas, incansável
Nesta fábrica de palavras
Que organizas com capricho
Levas à vitrine (que é o verso)
Da mais bela à necessária
E ao lixo mandas
Com um rabisco sobreposto
A que entendes não servir

Conduzes os meus dedos
Pelas luzes da imaginação
E o papel que era branco
Ganha a coloração
Que liberas da esfera
Do teu extremo

Outras, semelhantes a ti
Geradas pelas mesmas engrenagens
Correm folhas por aí
Assinando sentenças
E legitimando guerras

Nós, companheiros de viagem
Nessas horas intermináveis
De inspiração e agonia
Nunca haveremos de compartilhar
Os textos maquiavélicos
Destas atrozes assinaturas
Que desmoronam casas e poemas

Quando observo os teus movimentos
Penso ser eu, o operário a conduzir-te
Que toda a poesia já está em ti
No interior da carga
Que carregas como veia

Por isso, estimado objeto
De horas absortas
Quando vencerem-nos
Estes bárbaros senhores
Com suas canetas sem asas

Debaixo dos escombros
Dos seus ódios
Haverão de achar-nos
Entre letras, abraçados um ao outro
Os arqueólogos de um mundo novo
Que a nossa poesia, imortal
Há de criar.

Serginho Poeta

Os Meninos de Onde Eu Moro

Nunca os vejo falar das estrelas
Talvez, não possam vê-las
Os meninos de onde eu moro
Rezam em coro outros assuntos
Mais terrenos que celestes
Mas tem sonhos tão distantes quanto os astros

Se o fuzil é mais sonoro que a caneta
Quais os rastros que segui pra ser poeta?
E outro alguém, quais seguiu pra ser bandido
Se na flor da nossa idade era tudo parecido?

Será que para cada Ferreira Gullar
Haverão sempre de existir muitos
Fernandos Beira-Mar para servirem de exemplo?
E o literato, viverá sempre longe
Como um monge em seu templo de palavras?
Se os meninos não enxergam as estrelas
Há muito de errado
E qual a causa da falência?

A ciência social ainda é superficial
Para diagnosticar a culpa
E nada me preocupa mais do que os meninos
Mas o que podem os meus poemas
Contra a força-motriz desse trágico moinho?

Estão lá,
Ignorantes da presença das estrelas
Só peço à elas que não deixem de brilhar
Para que, quem sabe
Eles possam encontrar um bom caminho.

Serginho Poeta