quarta-feira, 2 de julho de 2008

Todas as Dores do Mundo


Preso em incontáveis bilhetes de amor
Era um raro par de asas seu sorriso
Hoje, livre, voa só, num céu granizo
E o que escrevo ninguém há que dê valor

Enfeito de versos os meus pensamentos
Desde o instante em que ouvi a sua voz
Agora, mesmo quando passa mais veloz
Seus sons ainda me tomam os sentimentos

Quando detinham-se na cor da sua pele
Os meus olhos refletiam um mar moreno
- nesga d’água, dilatando-se no olhar

Ao sentir a sua carne junto a ele
Corriam ondas no meu corpo, sem empeno
Nada tinha eu a querer, só navegar


Firme os pés em terras tão seguras
E o torpor que é direito aos precavidos
Ao mar, lancei-me incerto às aventuras
Que esperam navegantes desvalidos

O que vinha pela frente era mistério
Mas na ânsia de saber o seu segredo
Mais firme no intento que no medo
Já vencido, me rendi ao despautério

E fui, me deixando ser levado...
Pelos ventos...pela força das marés...
Verdes águas. Se não fossem traiçoeiras...!

Tudo aquilo que havia desejado
Tinha agora ao redor do meu convés
Recolhi as velas e içei minhas bandeiras


Por vontade ancorado no infinito
Onde bramem os sentidos mais profundos
De dores e prazeres, oriundos
Tudo pareceu-me mais bonito

Os astros falavam-me em gestos
Reparavam meu veleiro avariado
O oceano sob o céu enluarado
Invejoso, sacudiu-me em manifestos

Fui levado ao azul do planisfério
Onde os deuses ocultam tal ciência
Que nem sabe o mais grado magistério

D’onde nasce, se é semente, fruto e flor?
Da mais útil a mais vã experiência
Nenhuma há que se iguale a do amor


A partir de onde a febre
Coordenou os meus incertos movimentos
E o barco, louco, riu do sopro aos cata-ventos
E das ondas que estalavam no alquebre...

De onde o corpo, então sentiu
Um raio percorrer-lhe o estreito espaço
Que lhe separa a condição de putrefaço
Dos sândalos da alma pueril...

Nenhuma afirmação merecedora
De atenção ou de credibilidade
Posso dar a quem acaso me pergunte

Nada sei sobre a avassaladora
Impetuosa e voraz intensidade
Daquilo a me arrastar naquele instante


Tal qual um condor ferindo as nuvens
Na vastidão de um inóspito arredor
Surgiu a musa num palíolo multicor
Senhora de todas as vertigens

... e o mundo tornou-se imóvel e silente
Entre os azulados celestes e marítimos
Vendo a luz dos sonhos íntimos
Sorrir-me absoluta e inconseqüente

A eterna busca de um efêmero instante
Corrompeu de forma brusca o raciocínio
De quem, lúcido gabava-se ser cético.

E o que era incrível ao navegante
Surgia como a causa de um fascínio
Que viria a forjar seu dom poético


O desejo que atormenta aos sentidos
E a beleza entorpecente de Pandora
Transformavam-me ali, naquela hora
No maior entre os seres já vividos

Da heresia cometida não dei conta
Ao fartar-me em seus lábios e em seus seios
Satisfiz no ser divino os meus anseios
Adormecendo nos seus braços de santa

Despertei como o bêbado do vinho
A cabeça em atroz redemoinho
E o corpo exausto pelo açoite

Apenas os destroços da minha nau
A esperança e um denso vendaval
Foi tudo que restou daquela noite


Ao tomar o deserto a minha volta
Antecedendo o silêncio que surgia
Então, vi que tudo se esvaía
Até a lua c’o as estrelas de escolta

A sós fui ficar com com o céu noturno
Sem ao menos desfrutar prazeres falsos
Só a areia a me pungir os pés descalços
Num caminho feroz e taciturno

Andei tantas mil léguas sem destino
Embaixo do calor que a tudo escalda
Sem que pudesse ouvir a voz humana

Notei que existe luz no desatino
E que a quem sofre a dor respalda
Quando nem na morte a esperança abandona


Tive o peito dividido em duas partes:
- Uma, que no corpo ainda é peito
E outra, onde um sonho jaz desfeito
E pelo mundo, anda a vagar, fazendo artes.

Os deuses condenaram-me a viver
Como castigo por tão grande sacrilégio
Sem que nada no meu peito seja régio
Ou que eu possa outro amor voltar a ter

E a que eu sinta mais a dor – como castigo
Não será minha, só a dor que me aflija
Mas a de todos que deixarem-na comigo

E a viver essa vingança em seu propósito
Dirão a quem sofrer que a mim dirija
E da dor faça de mim o seu depósito
Serginho Poeta

San ernesto de La Higuera

Por que o meu corpo não estava à frente
Do tiro que irrompeu a tua carne?
Poderias, com muito mais capacidade,
Enfrentar o mal que ronda a minha casa.
Vejo, da minha janela, o escuro lá fora.
Ouço os gritos e me acovardo!
A ave de rapina pilha o ninho vizinho,
Enquanto eu conto ao meu filho a tua história.
Falo do que fizestes; da bravura que tivestes.
Só temo que ele me pergunte o que eu faço.
Devo dizer que temo o bicho-papão?
E se o mal invadisse a minha casa
Nesse exato instante em que te escrevo?
Esconderia-me debaixo da cama?
De certo que não.
Mas, então, eu me pergunto:
Por que não enfrento o monstro, lá fora?

Longe da minha casa e da minha cria?
Tua foto está ao lado da dele, Ernesto.
É como se eu pedisse proteção.
Teu retrato na parede
É como uma corrente de alho,
Que espanta os maus espíritos.
Ajoelharia-me diante do teu quadro,
Onde olhas para o horizonte,
E faria uma prece por tua ajuda.
Mas sei que não seria do teu agrado.
Não ensinaste ninguém a se curvar.
Então, se me ouves,
Ainda que, hoje, sejas apenas história,
Inspira-me com tua coragem revolucionária!

Estaria disposto a morrer, essa noite,
Enquanto escrevo esse desabafo,
Se a minha morte
Trouxesse um novo sol para o meu povo.
Não aquele, de oito de outubro,
Na Quebrada Del Churo,
Onde foras alvejado por uma bala cega.
Mas um, como na tarde de Havana, em 1959.
Se a minha morte valesse um sorriso
De um índio peruano,
De uma criança da Nicarágua,
De um negro do Haiti!
Se o meu sangue afogasse
O imperialismo ao norte do continente
E a minha carne fosse a última
A servir de alimento
Ao bico afiado da águia,
Certamente, não me arrefeceria a alma,
Atitude tão engajada nos teus conceitos.

Depois, Ernesto,
Acenderíamos um bom charuto
Numa pedra em Higuera.
E sobre o horizonte,
Para onde olhas na fotografia,
Veríamos o entardecer no céu da Bolívia,
E, então, poderíamos descansar em paz.

Serginho Poeta