sexta-feira, 11 de julho de 2008

O Goleiro

É como se o tempo não tivesse passado. É como se eu ainda estivesse lá sentado, vendo do outro lado do campo o emaranhado de pernas esfoladas e meiões caídos aos tornozelos. Deitava-me no chão de terra batida e assistia ao balé das nuvens, completamente alheio à disputa a que era forçado a participar. Acordava com os gritos irados do meu irmão, após termos levado um gol.
Aquela brincadeira não era muito agradável para mim, o caçula entre os garotos da vila. Minhas pernas saíam inchadas, meus joelhos ralados e minhas mãos ficavam vermelhas. Não podia nem pensar em chorar.
O tempo foi passando e eu me acostumando, e mais, acabei por gostar de ser o número um. Era como se eu me tornasse peça fundamental, tanto quanto as traves. Cresci e me aprimorei, já tinha tamanho suficiente para me impor, jogar na posição que eu quisesse, mas me fazia gosto ver a decepção na cara dos artilheiros.
Aqui estou, vinte anos depois! O torneio de futebol mais importante do planeta e a maior parte dos seus habitantes, voltados para esse pedaço de campo. O último chute, não há rebote. Dizem que é uma loteria. Cara ou coroa.
O absoluto silêncio que envolve o estádio permite que eu ouça o arrolhar dos pombos nos vãos das marquises e os passos do meu adversário sobre a grama macia. Escuto uma prece murmurante, enquanto ele ajeita a bola na marca fatal e quase confundo as batidas firmes dos nossos corações. Uma eternidade parece anteceder o apito do árbitro, mas ele vem, ensurdecedor como o sinal vespertino das fábricas, soberbo como o grasnar de uma águia. Agora sou eu a última fronteira entre o sorriso e a lágrima.
Resolveram deixar para mim a missão de salvar uma pátria, de libertar um povo:-Ladrões, policiais, empresários, médicos, padres, políticos, advogados, donas-
de-casa, mendigos, índios, pais, filhos, gente sem dentes, sem dignidade, sem
caráter, eu sou o remédio. Sou a salvação de quem não sabe votar, a desculpa de
quem não sabe governar, sou o suspiro de quem morre ou renasce a cada quatro
anos.
Todos os músculos do meu corpo obedecem a um único comando. Meu cérebro só tem nesse momento uma única intenção: -Tocar a bola. Minhas falanges conduzem o resto dos meus noventa e tantos quilos. Não respiro. Estou apenas a alguns centímetros do meu objetivo. Fecho os olhos. Não sei se estou certo ou errado, mas vou. Que Deus me perdoe!!!
Sinto a pancada da bola em meus dedos. Meu corpo flutua por uma fração de segundos, depois desliza pelo gramado e a seguir, corpos caem sobre o meu, no calor da vitória: - Eu consegui!!!!!
O estádio pulsa, ecoando meu nome a se perder na imensidão da história, no curso dos ventos, insensíveis às glorias, devastador dos momentos. Cada segundo dessa lembrança, me tocará com a força das marés, serpenteando contra o impávido rochedo. Cada toque do tempo, nas cordas da minha memória, deixarão nos ares arredios da minha idade a imagem de um herói, acima do manto de um mísero goleiro.


Serginho Poeta

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